quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Tiro ao lado


O tema da matéria era Estudo do Meio. Mais precisamente os sistemas que existem no nosso organismo. Confesso que já não me lembrava da maior parte das coisas e, não querendo parecer velha mas soando como uma, no meu tempo não dávamos esta matéria tão cedo. Não me recordo de, aos oito anos, já saber qual era o órgão reprodutor masculino ou o que era a fecundação. Mas adiante.

Estudámos os temas. E ele mostrou-se à altura do desafio. Do sistema circulatório ao respiratório, sem esquecer o urinário, do ureter à traqueia, passando pelos rins, o estômago ou o coração. Ficou tudo na ponta da língua e prontinho para o teste do dia seguinte.

No final desse dia, à saída da escola:
- Como correu o teste? - perguntei eu.
- Muito bem! - a resposta dele deixou-me com um enorme sorriso nos lábios.Tinha valido a pena tanta dedicação! Senti-me inchar de orgulho.
- Respondeste a tudo?
- Sim. Acho que vou ter boa nota.
- E houve perguntas sobre todos os sistemas?
Aqui começou o silêncio (e foi também aqui que eu comecei a perder o ar que me tinha deixado inchada).
- Então? - insisti eu - Saiu o sistema respiratório? E o digestivo?
O silêncio continuou. Comecei a estranhar.
- Mas afinal correu bem ou não?
- Sim... Mas o teste não foi de Estudo do Meio... Foi de Matemática.

Já não ouvia as justificações que se seguiram. Disse qualquer coisa sobre uma confusão feita pela professora, mas sei bem de quem foi a confusão. Depois, decidi olhar para a coisa pela positiva. Ou seja, havia mais tempo para voltar à traqueia, vasos sanguíneos ou bexiga. Quem não gostou muito foi ele. 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Alma de rapper

O rapaz decidiu que agora é rapper. Mas acima de tudo eu acho que ele é um poeta. E a prová-lo está a letra de uma música que escreveu, num repente de inspiração:

"Desde que cheguei a casa já ninguém me liga. É tudo tão óbvio porque eu não ligo a ninguém.
Saí de casa para fumar um charuto, passaram cães com o Sodré e não me cumprimentaram. Fiquei mesmo triste.
O meu pai já não me liga por tudo o que eu faço. Não dá para comprar um carro, não há dinheiro.
Fui para a cama mas no dia seguinte toda a gente me ligava. Foi uma festa."

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A frase do ano

«Quando for grande vou ser culturista. E ter uns músculos muito grandes.»

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Dúvidas existenciais

Deitado na cama, o pai ali sentado ao lado, começou com as suas dúvidas existenciais:

- Pai, quando morremos, depois voltamos a nascer?
O pai não respondeu.
- Quer dizer, depois nasce alguém?
O silêncio do pai continuou.
- Pai, estás a dormir? Sabes, eu andava muito preocupado com a morte, mas agora já não ando. O que me interessa é viver a vida!

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Extinção da humanidade

Os lamentos eram muitos. À porta da loja exprimia-se, alto e bom som, sem deixar margens para dúvidas sobre o que queria. Ou melhor o que não queria: perder tempo nas compras. Mas o consumismo materno falou mais alto.

- Vamos lá - disse eu. - Damos aqui uma volta e depois vamos embora.
- O quê? Já viste o tamanho da loja? - respondeu ele. - Quando sairmos daqui já o homem vai estar extinto!

sábado, 24 de outubro de 2015

Rugas aos oito anos

- Estou cheio de rugas! - grita ele a partir da casa de banho.
- Não tens rugas nenhumas - digo eu.
- Olha, olha para mim. - e começa a gemer - Como é que eu posso ter tantas rugas? Oh, estou a ficar velho!
- Não tens rugas nenhumas - repito eu.
- Nunca mais faço cara mau! - e vira-me costas, cabeça baixa, com um valente suspiro.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Tu pensas que mandas...

- Vamos dormir?
A resposta não se fez esperar. Do alto dos seus oito anos disse:
- Não.
- Ai sim? Mas já são horas. Vá lá, está na hora de ir para a cama.
Ele nunca perdeu a calma. Sentado no sofá, olhou na minha direção e disse, paciente e condescendentemente:
- Não vou ainda. Ah, e tu não mandas em mim. É um problema, porque tu achas que mandas, mas na verdade não mandas nada.

Eu calei-me. Por pouco tempo. Esclarecido sobre quem mandava em quem, acabou por ir domir sem mais reclamações.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Motivos pessoais

Sentado à mesa do jantar, olhava fixamente o prato de sopa que lhe tinha colocado à frente.
- Não quero sopa hoje - disse.
- Porquê?
- Por motivos pessoais.
E mais não disse. Escusado será também dizer que a comeu. Toda.

domingo, 20 de setembro de 2015

Audição seletiva

Falei, falei, falei... De repente parei e percebi que ele não me estava a ouvir.

- Estás a ouvir a mãe?
- Claro!
- Fiquei com a impressão que não estavas a ligar nenhuma ao que eu dizia.
- Achas? Claro que não. Eu oiço sempre o que me dizes... quando interessa.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Um 'vermelho' em casa

Com as eleições à porta, muito se tem falado de politica. Os candidatos esgrimem argumentos, trocam acusações e têm um tempo de antena que conquistou a atenção dele.

- Em quem é que vais votar? - perguntou.
- Não sei. Ainda vou pensar no assunto - disse-lhe.
- Eu sei em quem é que eu votaria se pudesse.
- Em quem? - confesso que estava curiosa.
- No Jerónimo de Sousa [líder do PCP].
- Porquê? - perguntei eu, verdadeiramente surpreendida.
- Porque ele é um senhor de idade. E os senhores de idade são sempre sábios.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Um comprimido para viver 300 anos

A ideia de eternidade continua a povoar-lhe a mente. Não se cansa de dizer que gostava de viver para sempre e olha para mim na esperança de que lhe diga que sim.

- Gostava mesmo de viver para sempre.
- Mas sabes que ninguém vive para sempre.
- Mas eu gostava tanto!
- Há gente que vive durante muitos anos. Olha o Manoel de Oliveira. Viveu até muito tarde.
- Sim, até aos 106 anos. Mas não viveu para sempre.
Calou-se. Pensou durante uns instantes e voltou à carga.
- Já sei. Vou criar um comprimido que nos permite viver 300 anos. E quando as pessoas chegarem aos 299 anos, voltam a tomar o comprimido e vivem mais 300.
- Mas sabes que para isso tens que estudar muito. Para ser cientista é preciso estar com muita atenção na escola - aproveitei logo a boleia...
- E é preciso dinheiro. Vou começar já a juntar.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

O drama em figura de gente

A gritaria foi grande. Depois de um dia de correria e brincadeira, a recusa em tomar banho e subsequente escarcéu valeu-lhe um castigo: ficou sem direito aos aparelhos eletrónicos de que tanto gosta e depois do jantar, o destino foi o quarto (que não é lá grande castigo, é certo, já que se encontra cheio de brinquedos e distrações).
- A minha vida é muito má! - gritava ele, informado com a situação. - Nunca mais vou sair deste quarto.
- Eu não disse até quando é que ficavas de castigo. Sair só depende de ti - disse eu, numa tentativa de acalmar o drama.
- Não, eu não mereço sair. Vou ficar aqui para sempre.
- Para sempre? É isso que queres? - questionei eu.
- Sim. Para sempre! Ah, mas não te esqueças de quando eu tiver 70 anos me vires tirar desta cama. Nessa altura já não devo conseguir.

Não conheço outro com tanto jeito para dramatizar. Em tempos quis ser ator. Já não quer. Agora percebo que vai passar ao lado de uma grande carreira.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Versão matemática do sermão de S. António aos peixes

Como é que eu sei que ele precisa de conviver com outras crianças?
Quando ele tenta ensinar a tabuada aos peixinhos do aquário.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Grécia ou Aicérg

A política internacional sempre foi tema de grande interesse lá por casa. Ontem, a situação económica da Grécia deu origem a uma conversa com o comentador político de palmo e meio.

- O que achas da situação na Grécia? - perguntei eu, convencida de que me iria ignorar.
- Acho que o país se vai afundar completamente. E depois vai aparecer outro, a Grécia 2. Também se podia chamar Aicérg.
- Ai e quê?
- Aicérg. É Grécia ao contrário.

Terminada a conversa, o tema mudou readicalmente para dentaturas postiças.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Uma dentada sem querer

Há coisas que deixam uma mãe orgulhosa e uma delas era o facto de, em quase três anos de vida escolar, ele nunca ter levado para casa um recado na caderneta por mau comportamento. A "estreia", como definiu o próprio aconteceu agora, à beira do fim do ano letivo. Estávamos tão perto de mais um ano perfeito...
A missiva informava que o G. e o P. tinham andado "à luta". Referia que o G. tinha sido "empurrado primeiro", informação, mais uma vez segundo ele, muito relevante, que tinha havido "troca de chapadas" e que o G. tinha ferrado uma dentada no P. E tudo porque, segundo a professora, para quem o tema da briga é digno de relevo, "o P. tinha dito que era melhor guarda-redes que o G." (de salientar que são os dois uma nódoa).

- Tu mordeste no teu colega? - exclamei eu, horrorizada.
- Foi sem querer.
- Como é que se morde em alguém sem querer? - a pergunta era apenas retórica.
- A minha boca estava aberta e o braço dele foi lá parar.


terça-feira, 21 de abril de 2015

Uma coisa não tem nada a ver com a outra mas...

Há coisas que ele diz com uma convicção invejável. Esta foi uma delas:
 
"Apesar de ser virgem [de signo, leia-se], não acredito em milagres."

segunda-feira, 9 de março de 2015

Em português correto

- Vou urinar.
- Vais quê? - perguntei eu, que não tinha entendido as palavras dele.
- Urinar. Já volto.
- Vais fazer chichi. - insisti eu.
- Eu prefiro urinar. É mais correto.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Namoradas? Que nojo!

O tema namoro é recorrente lá em casa. A maior parte das vezes é o melhor caminho para o arreliar. É que o amor não tem andado no ar, agora que estamos na fase "as meninas são nojentas". Mas ultimamente, tem sido ele a abordar o assunto, ainda que como apenas espectador de uma cena amorosa que se desenrola em vários actos.
- O P. está a tentar arranjar uma namorada nova.
- Ai sim? - o P. é um dos amigos, de igual idade, leia-se, 7 anos.
- Mas não está a ter sorte nenhuma. Ontem foi ter com a D. e perguntou-lhe se ela queria ser namorada dele. Ela disse que não, mas ele não desistiu. Tentou várias vezes até que ela o ameaçou de pancada. Eu fiquei a ver aquela cena triste.
- Não gostavas de ter uma namorada? - perguntei eu.
O silêncio, acompanhado por um olhar de raiva, foi a resposta.
- Hoje, tentou o mesmo com a F. Mas ela mandou-lhe o gorro para o chão e chamou-lhe nomes. O P. está com azar.
- E tu?
- Eu fiquei a ver. Coitado.
- Mas tu não querias uma namorada?
- Eu não! Não gosto dessas coisas. Depois tinha que dar beijos, que nojo!
- Beijos?
- Sim, o P. beijava a M. na boca a toda a hora. - A M. era a namorada do P.
- Mas porque é que o P. quer outra namorada, se já tem uma?
- A M. já não quer dar mais beijos. E depois há a coisa das mãos?
- Das mãos? - perguntei eu, já com algum receio da resposta.
- Sim, ele quer mexer-lhe, pôr-lhe as mãos, mas ela não quer.
A conversa ficou por aqui. Não fiquei completamente esclarecida em relação à questão das mãos, mas acho que prefiro ficar na ignorância. 

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Uma ida diferente ao supermercado

- Hoje vamos às compras? - perguntou-me ele, com a carteira na mão.
- Vamos ao supermercado. - respondi eu, já a adivinhar o que ali vinha.
- Então vou levar a minha carteira para comprar umas coisas.
A caminho do supermercado, enquanto inspeccionava as moedas que lhe enchiam a carteira (moedas de dez, vinte e 50 cêntimos que, todas juntas, totalizavam qualquer coisa como quatro euros), alertou:
- É melhor cada um de nós levar o seu carrinho de compras.
- Porquê? - perguntei eu.
- Porque eu não quero ter que pagar as tuas coisas.
Tive vontade de lhe dizer que não corríamos esse risco, mas calei-me.
No supermercado, desapareceu com o pai. Acercou-se de mim mais tarde, já com as coisas na mão: uma carteira de cromos, uns dentes postiços (o Carnaval está a chegar) e uma caixa de lápis de cor.
- É só isso? - perguntei-lhe.
- Sim. Vamos pagar.
Na caixa, foi ele que passou os seus artigos, que escolheu as moedas (2,57€) e que pagou. Depois, pegou no saco e no talão e passou uns bons minutos a olhar para a conta.
- Está tudo certo. - Disse, sem esconder o contentamento. - E ainda me sobrou dinheiro. Para a semana voltamos.